THE PASSENGER

27/03/2021

“That a girl with eager eyes and yellow hair

Waits me there”

Robert Browning

 

Recordo perfeitamente que embarquei na última carruagem, precisamente às dezoito e trinta, em Canterburry, com destino a Londres. Era uma noite clara, céu sem nuvens e havia poucos passageiros. Comigo iam, sentados à minha frente, um casal de idosos levando uma menina de aspecto doentio e, ao meu lado, com uma casaca de cor marrom muito justa, um senhor gordo e um tanto quanto antipático.

A viagem duraria a noite toda e uma parte da manhã seguinte. Eu precisava estar na capital por volta do meio-dia a fim de resolver o caso do inventário de um antigo cliente. Não chovia, as estradas estavam em bom estado, não deveria então ser muito cansativa a jornada. Felizmente os passageiros ficaram em silêncio. Inclusive a menina desgraciosa. Prefiro sempre o silêncio em viagens. Todos calados, o tempo passa mais rápido. Bastam-me os meus pensamentos.

Puxei da algibeira o relógio e vi que passava um pouco da meia-noite quando em uma pequena vila desceu o casal de idosos com a menina. Lembro ter pensado em compaixão a respeito deles. Tão velhos… a menina deveria estar doente… que Fado ruim os perseguia!

Uma hora depois, creio, desceu o gordo. Fiquei felicíssimo. Estava sozinho, tinha toda a carruagem só para mim. A viagem seguiu e fiquei a devanear meio sonolento. Quando vamos adormecer, os pensamentos tornam-se confusos, desconexos. As densas sombras da noite na floresta e o luar entre as nuvens foram minha última lembrança antes de entregar-me ao sono.

Sim, eu estava completamente exausto, pois não vi a parada da carruagem para aquela passageira embarcar. Simplesmente ela estava ali, sentada à minha frente, quando subitamente acordei ainda durante a madrugada. Não me agrada ser surpreendido, muito menos enquanto durmo. Mas relevei tal sensação diante da beleza daquela mulher. Beleza exótica, digo, mas impressionante. Uns olhos castanhos e grandes, da cor de uma floresta de pinheiros ao fim da tarde. O cabelo em cachos, longo. A tez estranhamente morena. Não era inglesa, por certo. Tinha um vestido preto, longo e fechado. Ela era inescrutável. Foi a minha primeira impressão. Enganei-me. Conversamos muito. Ela confirmou ser estrangeira, falou de seu distante país. Contou-me lendas, casos, falou de si. Aquela jovem disse-me coisas que nunca ouvi. Às vezes calava o turbilhão dos meus pensamentos, às vezes o atiçava. Eu também falei bastante. Entendemo-nos. Tive uma estranha sensação que preciso relatar. Senti que ela precisava estar ali. Que era imperioso dizer-me tudo aquilo, que eu precisava vê-la e ouvi-la daquela maneira. Tal qual um devotado crente diante de uma imagem terrível e pagã.

Não obstante, e esta parte parece-me um tanto quanto curiosa, eu adormeci outra vez. Foi durante uma pequena pausa em nossa agitada conversa. Já cantavam os primeiros pássaros da manhã. Mas estava escuro ainda na estrada. Aquele momento impreciso do dia em que não distinguimos se é o presságio do sol ou o seu ocaso. Adormeci, confesso. Não foi muito gentil. Não é de minha formação agir assim.

A próxima lembrança que tenho, devo dizer, foi a mais bizarra de todas. Ao acordar, já entrando a carruagem nas lamacentas ruas de Londres, não estava mais a mulher diante de mim. Não me lembro de o veículo ter parado para ela descer. Disso seguramente não recordo. Fiquei deveras aturdido, perplexo.

Eu tinha de saber sobre ela. A minha acompanhante por várias horas naquela estranha viagem. Fui então ao cocheiro e indaguei-lhe em que ponto a mulher descera. Quem era ela. Eis a incompreensível resposta do homem: “Não sei de mulher nenhuma. O senhor viajou sozinho depois que os quatro passageiros desembarcaram no meio da noite”.

Só uma coisa posso dizer sobre tudo o que relatei. Decididamente eu não estava sonhando…

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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