A concluir pelo que sugere o título, em meio a uma pandemia que já ceifou a vida de quase trezentos mil brasileiros, O Ar que me falta (Companhia Das Letras, 2021), convenhamos, não parece mesmo ser uma leitura recomendável. Pelo contrário, ainda mais quando o subtítulo reforça tratar-se da “história de uma curta infância e de uma longa depressão”.
Aos que não se deixarem dominar pelas meras impressões de sua perigrafia, no entanto, a exemplo do que fiz, mal soube que o livro havia chegado às livrarias, as memórias de Luiz Schwarcz, um dos mais respeitados editores brasileiros, constitui uma leitura mais que recomendada.
Já às primeiras páginas do que poderia ser apenas mais um relato de luto e depressão, o livro seduz o leitor por sua dignidade autoral, a que se soma uma beleza formal que não surpreende se vier a constituir um divisor de águas no contexto de tudo o que foi publicado no Brasil em termos de memorialismo, no atual milênio. E quando digo ‘beleza formal’, na linha de certos estruturalismos redivivos, faço-o para evidenciar a força estilística do texto mesmo quando dedicado a relatar momentos dramáticos da vida de seu autor, como nas recorrentes passagens do livro em que Luiz Schwarcz narra as impensáveis crises de depressão ou as circunstâncias em que, ciclotímico diagnosticado, não foi capaz de domar os impulsos de sua doença, finalmente tratada com sucesso.
Não é muito dizer que, exatamente a essa altura do livro, mais precisamente a partir do capítulo ‘Efeitos colaterais’ (página 153 da primeira edição), O ar que me falta dá a ver a presença de um escritor notável: a leveza do texto é tanta, que percorremos sua tessitura tocados por uma serenidade e um senso de realidade que traga o leitor numa experiência de leitura que, a um só tempo, comove e enriquece, como a fortalecê-lo diante do desconhecido, das tristezas eventuais e dos medos recorrentes num mundo marcado por tantas contradições.
Importante ressaltar, no entanto, que não estamos falando de autoajuda, longe disso, mas de uma narrativa construída com tão rigoroso senso de proporção, de clara compreensão das limitações humanas e de sua natureza íntima, que não é sem razão que se pode afirmar que O ar que me falta pode ser lido, sem maior rigor estético, como um romance. Quem sabe aquele tão sonhado e que Luiz Schwarcz diz no livro ter sido incapaz de escrever.
Subjetivações à parte, o livro, todavia, é muito, muito mais que uma história de infância e depressão. Há passagens em que deparamos com um escritor atento a outras tantas questões: as recordações (a palavra aqui deve ser entendida no seu significado etimológico, isto é, trazer de volta ao coração) do pai, empurrado de um vagão de trem a fim de escapar da morte, constitui um relato raro de uma história por demais repassada, os horrores nazistas, pois que Luiz Schwarcz encontra alternativas de linguagem e enquadramentos extremamente felizes, em que pese a simplicidade de estilo que é mesmo uma das linhas de força do livro.
Sob este aspecto, é notável quando o autor realiza o que se pode definir como uma “mise en abyme” dentro do próprio relato, assumindo para si o conflito do pai, a quem não raro trata por André, para evidenciar um dos seus dramas pessoais mais profundos: “- eu tinha que acertar, salvar a vida de meu pai da tristeza, proporcionar uma felicidade que a rememoração constante do passado impedia”.
Surpreende, num livro de memórias, que se possa dizer tanto em tão poucas páginas (o livro tem menos de 200). Aos olhos do amante da literatura, por certo, saltam de suas páginas histórias curiosas do mundo editorial. Aqui se pode destacar, por exemplo, a repercussão do romance Boca do Inferno, da cearense Ana Miranda, no mercado internacional de livros: “A cada recusa minha, as blind offers subiam, dobravam ou triplicavam de valor”. Ou Chatô, de Fernando Moraes, outro grande sucesso da Companhia Das Letras, de cujo lançamento uma oscilação de humor quase impede o editor de participar.
Para não falar da verdadeira declaração de amor que o memorialista faz à mulher, a consagrada escritora Lilia Schwarcz, a quem atribui com ternura muito de sua vitória contra a doença.
Ao lado desse amor, outros, como a música clássica, o rock, a literatura, o teatro, cinema, sobre os quais deixa ver, sem qualquer indício de vaidade desnecessária, seu sofisticado domínio e refinado bom gosto.
Um belo livro.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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