UM LIVRO…

12/09/2020

“Tudo isso se descarrega

                    Ao porto da sepultura.”

                                         Gil Vicente. Auto da Alma

Tenho sempre andado em antiquários e sebos à procura de livros. Tenho-os a mancheias. A maioria muito antigos. Têm histórias, marcas singulares de quem os possuiu.

Mês passado, na Livraria do Ouvires, encontrei uma edição portuguesa, do Porto, dos poemas de Camilo Pessanha. 1938 o ano da impressão. Comoveu-me a dedicatória escrita a mão, numa cursiva e elegante caligrafia.

Da sempre tua M.

                                      Por todos os nossos momentos…

Sempre me interessei, como convém a um bom bibliófilo, pelos indícios de leitura que ficam nos livros. São pungentes traços, muitas vezes, dos antigos donos. Pegadas na areia que a devastadora ação do tempo não pôde apagar. Tais detalhes valorizam ainda mais a obra. Um nome, uma data, um carimbo. Quantas dedicatórias afetuosas já vi! Juntamos livros por toda a vida e depois, triste fado, os herdeiros fazem com que vão parar a um sebo qualquer. Os meus também irão. Em algum lugar espero velar por eles.

Volto à dedicatória. Vê-se que o tônus é demasiado afetivo. Uma amorosa relação, por certo. É totalmente despiciendo, eu mesmo não tentei, imaginar como se chamaria a mulher por trás da inicial M. Marcela, Márcia, Maria, Mariana… quantas tentativas mais? Em vão. Basta deduzir que M. foi forte, instigante, feita de entregas imorredouras. Por que não pensar em uma amante abissal, destruidora, das que ficam como chaga na memória, como câncer na alma? Uma daquelas amantes que nos exigem mudanças drásticas na vida. Uma estrada bifurcada, um dilema; uma intensa mulher feita de extremos.

Talvez M. tenha sido muito diferente. A Dama Branca, não a femme fatale. Esses “momentos” da dedicatória poderiam ter sido dóceis horas de aconchego. Carinhos quase maternais de esposa. M. poderia ter morrido idosa e grata por ter dado amor e devoção a um dedicado marido. Imaginar é perder-se…

Como o livro chegou até essa antiga livraria? Por quantas mãos afetuosas passou? Quantos donos teve? Os herdeiros de M. e de seu amado o teriam vendido? Ou foram outros que sequer conheceram o casal? Dos livros e da vida não sabemos os descaminhos.

Fico ainda a devanear… M. não era leitora comum. Era refinada, cultíssima. Ler o Pessanha é pertencer a um dileto grupo de entendidos do Símbolo. O poeta é denso, sugestivo, musical. O maior simbolista em português. Tenho agora o livro entre as mãos… que conversas teriam M. e seu amado sobre a poesia de Camilo Pessanha? Eram solitários cúmplices nessa deleitosa e complexa estesia.

M. já pertence às minhas visões. Pode ser que habite os meus sonhos. Para mim o seu esboço, sempre com tênues contornos, é o de uma mulher magra, lânguida…. cabelos longos e negros… os olhos grandes e tristes… talvez negros também.

Já é madrugada na minha alma e na minha velha biblioteca. Com meu charuto e minha dose de uísque teimo em não dormir… teimo em pensar com inefável candura na delicada mão de M. escrevendo aquela dedicatória…

                       Da sempre tua M.

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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