Uma fatalidade

12/04/2025

Durante uma década estive em sala de aula ensinando literatura e redação. Ora, é de se supor que os alunos, vez por outra, perguntassem quando e como decidi ser professor, onde eu estava com a cabeça na época etc.

E, mais especificamente: por que literatura e não matemática, química ou física? Eu sempre gostara de livros?

A memória prega peças: hoje já não me recordo se, em algum dia, eu contei a história tal qual ela aconteceu.

Mas antes desse “acontecimento”, preciso dizer algo: eu já tinha travado certo contato com os livros. Na antiga biblioteca de minha última escola, durante o ensino médio, havia lido uns trechos de Vieira (o Sermão da Sexagésima me impressionou sobremaneira), e também um Álvaro Cardoso.

Lembro-me de que meu primeiro livro mesmo, lido de cabo a rabo, foi o engraçadíssimo “Feliz ano velho”, de Marcelo Rubens Paiva – o velho Rubens voltou à moda esses dias, não é mesmo?

Depois disso, foi o rompimento. Hoje eu sei que aquela época se apresentava mais propícia ao sentimento que ao conhecimento.

Quando você mora no interior, é urgente se apegar às paixões mais imediatas; aos desejos, a sede de viver, ainda que você só resvale nisso tudo. Mas o que importa mesmo é agarrar com unhas e dentes qualquer grande emoção, qualquer amor clandestino que seja.

E foi justamente num desses momentos cruciais e tumultuados, há dezessete anos, que aconteceu o inesperado: encontrei vida em papéis antigos e gastos; encontrei um diálogo intrigante com muita gente morta. Como aconteceu?

Um dia fui convidado por um pastor da capital (uma filial da igreja em que ele congregava se instalara em nossa cidadezinha) para conhecer sua biblioteca. Nota bene: eu era um sujeito muito religioso à época.

O pastor era corpulento, alto e muito jovem para o cargo, supunha eu. Chegando lá, avistei a biblioteca disposta na sala de jantar. Era uma estante de madeira, dessas baixas e protegidas por vidros. Mas ocupava muito espaço.

Perguntei se podia olhar e de pronto comecei a vasculhar entre as dezenas de títulos.

A maioria, é claro, era sobre a bíblia. Porém ele possuía alguns volumes de literatura, história antiga e algumas biografias.

Saí de lá com uns dois livros e umas oito fitas cassetetes (sou desse tempo) nas mãos.

No entanto, eu gostei mais das fitas. Eram pregações muito bem elaboradas e eloquentes do líder desse pastor.

Quando devolvi as fitas, perguntei ao pastor como aquele homem, seu mentor, podia falar tão bem e expressei o desejo de me comunicar “like” ele. O jovem pastor apenas disse:

“O segredo dele é que lê muito”.

Saí de lá decidido sobre uma coisa: fosse o que fosse, tornasse o que me tornasse, queria ter preparo, estudar para falar bem e, o mais importante: fazer de tudo para nunca ser “apanhando” por uma imprecisão, por uma falha básica; nem queria mais estar muito próximo das ideias da maioria. Eu queria mais.

A ideia era mesmo transcender aquele meio sem opções, sem desejo pelo saber, imerso em suas convicções repetitivas e em suas “paixões do ventre”.

O que eu mal sabia, e muito menos aquele pastor fatídico, era que o contato com os livros – e cada vez eles eram tão diversos em seus assuntos e temas! – iria me arremessar num mar de dúvidas, solidão e desilusão.

Ironicamente, a primeira vítima de minha desilusão foi a religião de que era tão apegado. Depois veio a solidão social, familiar etc.

Por outro lado, creio que já ali entrei, ainda que de penetra, na chamada “congregação dos sábios”. Minha curiosidade só aumentou e me levou às águas mais turvas, caóticas e bonitas que jamais conheceria não fosse aquela dica, naquele dia, naquele momento específico de minha vida – e naquela cidadezinha.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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