Que Deus e o diabo estão no detalhe, não há quem duvide. Mas que o divino e o macabro estejam também na galhofa, na fofoca do bar e na maledicência, a bem da verdade, só o soube agora.
Digo agora para dar mais efeito ao fato. A história não é minha e dela só tomei conhecimento há cerca de três semanas. Estávamos na mais famosa (e agora esquecida) taverna de nossa cidade. Ocultarei nomes para atender ao pedido de seu dono e principal narrador desta história.
Os jovens de hoje não sabem, mas o local ao qual me refiro foi o primeiro a acolher as vanguardas em Iguatu. Artistas de rua, escritores, atores e atrizes, bem como beberrões inveterados, e almas penadas de toda má sorte frequentavam o mesmo lugar.
Seu dono? Um sujeito excêntrico, de inquestionável bom gosto musical, que também era conhecido pela alcunha de “cientista louco “. Qual teria sido essa sua invenção que gerou tanta espécie na sociedade?
Nunca soubemos e essa era toda a graça, todo o garbo, todo o mistério que pairava sobre as árvores frondosas que, feito guardiãs, expulsavam qualquer alma que não partilhasse do bom gosto, da sinceridade de sentimentos, dos corações desnudados que frequentavam o ambiente.
Muita água passou nesta ponte. O bar deixou de ser o que era, mas nós nunca o abandonamos. E num desses dias quentes, no tempo morto do final da tarde, um dos presentes, o “mago véi”, como nós o chamamos, contou um causo seu.
Sabe Deus quanto pesa esse sujeito, mas duvido que chegue aos sessenta. Seus dedos são finos como os da bruxa dos contos de fada. Os dedos aqui são importantes. Vejam: ele, sempre falando mais alto e em tom de deboche, mostrou um dedo inchado.
– Vige! O que aconteceu, mago véi? – quis saber o professor, outro assíduo frequentador da taverna.
– Fiquei empolgado na hora do coito e deu nisto.
Então ele contou que a coisa foi ficando selvagem e, a pedidos da amante, ele foi realizar o ato de deixar as digitais.
– O problema – disse ele enquanto fazíamos troça–, foi na hora da alavancagem, do impulso.
– Calculei mal o espaço e dei com os dedos na parede do quarto. Eis o resultado – a expunha o dedo vermelho e desigual.
Todos nós caímos na risada, exceto o dono do bar. Reparamos de imediato seu silêncio. Com um dos dedos ele coçava a face já calejada da idade. Olhava o horizonte, em reflexão profunda.
Quando perguntado acerca de seu silêncio, o homem virou -se, súbito, para atrás de si, procurando por sua mulher. Ela não estava. Foi então que ele partilhou sua perturbação:
– Bicho, eu percebo, estão entendendo? Eu percebo que a idade é um fardo intermitente, estão entendendo?
Ficamos em silêncio à espera das palavras do sábio e cientista louco.
– Aqui, bicho, bem naquela mesa – apontou para uma mesa vazia – andou uma mulher.
Ficamos estupefatos. Nunca, em todos estes anos frequentando o dito bar, vimos uma mulher ali – exceto acompanhada por um colega ou conhecido.
Mas, segundo o narrador, não era uma mulher de nossa cidade: era uma forasteira. Pelo relato que irei reproduzir, o leitor se questionará se ela de fato existiu, e mais ainda: se o que ele alega que aconteceu naquela longínqua tarde, poderia realmente acontecer logo naquele bar, logo naquele dia, logo em nossa cidade onde nada acontece.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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