“We’ll tak a cup o’kindness yet
For auld lang syne”
Robert Burns
François Rabelais (1494-1553) foi seguramente um dos últimos Goliardos. Um Goliardo devant la lettre. Um monge beneditino humanista com fortes traços profanos. Suas principais obras, Gargantua e Pantagruel, assinalam o início de uma verve satírica ainda nos primórdios do Renascimento europeu.
Da obra Gargantua (1532) extraímos um curioso excerto, à página 40, capítulo V, intitulado “A Conversa dos Bebedores”. Dois monges estão a beber em uma lauta ceia. Intelectuais e espirituosos, discutem pertinentes questões sempre perpassadas pelo divino Baco. A certa altura, com o indefectível copo à mão, um deles propõe: “O que nasceu primeiro, a sede ou a bebida?”
A questão é deveras metafísica. Até mesmo Platão e Kant dela se omitiram. Mas é crucial, sobretudo para os que amam o festivo convívio do álcool. Devo confessar que nunca me ocorreu tal dúvida, como a esses sábios monges. Bebo sempre pensando em outras coisas. No passado, nas mulheres, nos livros. Talvez eu tenha sido um mau filósofo, mas um bom bebedor. Eu posso assegurar. Eis os argumentos escolásticos dos bons religiosos.
O primeiro assevera que foi a sede. E proclama: Quis innocens sine site biberet? Quem beberia, inocente, sem ter sede? Ou seja, ex expositis, a bebida surgiu depois, porque houve primeiro a sede. A necessidade de beber moveu a criação da bebida. Ou ainda, antes de Baco houve a potencialidade ideal de Baco.
O segundo monge replica veemente: Foi a bebida! Pois, privatio habitum presupponit. A privação pressupõe o hábito. A bebida provocou o surgimento da sede. Como haveria a sede, se não houvesse antes o vinho para se beber? Segundo uma antiga versão do mito de Dionísio, as almas eram plenas, saciadas, viviam em Plenitude. O deus do vinho ofereceu a bebida sagrada para que dela surgisse a insaciável sede do desejo. Assim, primum vinum, post sitis. Primeiro o vinho, depois a sede.
No texto de Rabelais os dois monges amigos não conseguem chegar a um termo definitivo na contenda. Mas terminam embriagados, que é o mais importante. Façamos isso também.
Dificillis quaestio! Intrincada questão; por certo. Mas nos inquietemos, bom leitor. Nem pensemos tanto. Apenas bebamos, bebamos muito, com bons amigos e, principalmente, com belas mulheres.
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
0 comentários