“Si no por un no sé qué
Que se halla por ventura.”
San Juan de la Cruz
Nós quase podemos vê-la, bom leitor, quase podemos vê-la….
Ela está diante do espelho, em sua casa, tingindo os lábios com um discreto batom róseo, usando um vestido azul recatado, mas que lhe acentua as formas belas e jovens. O cabelo preto, muito liso e longo, deixa-o sempre solto, como quer o marido. Faz-lhe sempre todos os gostos, como foi educada pela mãe e pela tradição católica que segue e é plenamente feliz com isso.
Como em todo fim de tarde, a noite a encontra assim pondo-se bela e perfumada para o esposo. São casados há pouco tempo. Amam-se deveras. Ainda não têm filhos. O marido trabalha o dia todo. Ela o espera sempre de bom humor, alegre e pronta para os sensuais convites.
Agora a vemos pôr uma fivela branca no cabelo, fazendo um gracioso arranjo enquanto sorri. Por que a felicidade não pode ser assim? Não há tolas inquietações em sua mente. Ela espera o marido e é feliz!
O aroma muito agradável do jantar que ela mesma preparou, como sempre o faz, espalha-se pela casa em perfeita arrumação. Pelas mãos dela, é claro.
Maquinalmente, um rápido olhar para o pequeno relógio no seu delicado pulso. O marido tarda um pouco. Às vezes detém-se a beber com amigos após o expediente. Ela espera com amor e paciência, próprias e santas para uma adorável esposa. Se ele tem amantes? Talvez. Isso não tem a mínima importância. Nenhuma outra ocuparia o seu lugar. Ela sabe bem o quanto é amada; o seu status e o seu papel.
Cansada do espelho, liga a televisão e senta-se no grande e macio sofá de tecido negro. Cruza as brancas e torneadas pernas, totalmente distraída das imagens no aparelho. Dá-nos uma fantástica visão do vão das coxas grossas e rijas. Ajusta o vestido; leva a mão ao cabelo e o prende acima da cabeça. Quando o visse chegar a casa, soltaria as volumosas mechas.
Não era uma noite quente. Uma brisa constante entrava através das persianas das janelas e balançava as muitas plantas do jardim, o seu querido jardim, em frente a casa.
Agora ela se faz um pouco pensativa… e, súbito, como quem tem uma feliz ideia, apanha na mesinha ao lado do sofá o álbum do seu casamento. Ficava sempre lá, a sagrada relíquia dos momentos mais venturosos que vivera.
Detém-se, emocionada, a rever as fotos. Era o seu destino, nada mais. Pleno destino. Um bom marido, uma casa, talvez filhos.
Ela admira sua própria beleza no vestido branco e puro das núpcias. Casara-se virgem, por certo. Discreta, passiva, singela sempre; como é correto e conveniente a uma mulher.
O ruído familiar do portão a traz de volta dos seus devaneios. O esposo chegou. Ela o recebe com um sorriso franco, feminino e quase maternal. Recolhe a sua pasta com os papéis do trabalho enquanto ele se encaminha para um banho.
Naquele momento, naquele lugar reina a paz. Uma paz feita de total confiabilidade, verdades sagradas, tradição, sadia religião e muitos outros sólidos valores.
Ela põe-se a esquentar o jantar, tendo já arrumado a mesa. Ele terminou o banho. Olham-se longa e apaixonadamente…
O jantar pode esperar. Eles vão para o quarto do casal. Nossa Senhora os abençoa.
Uma noite perfeita de um mundo perfeito!!!
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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