Chico Buarque de Hollanda, do alto de sua genialidade, escreveu sobre a Revolução dos Cravos uma de suas mais belas canções, cujo título, “Tanto Mar”, constitui uma referência metafórica à distância que separa o Brasil de Portugal, quer em termos objetivamente referenciais (denotativos), pois há um oceano entre um país e outro, quer em termos poéticos, uma vez que, à altura em que compôs a obra (1975), diferentemente dos irmãos lusitanos, os brasileiros ainda padeciam dos horrores do golpe militar de 1964.
É pouco divulgado, no entanto, mesmo entre os historiadores da MPB, o fato de Chico Buarque ter escrito duas versões para “Tanto Mar”. A primeira, pouco conhecida, mas não menos bela, é esta: “Sei que está em festa, pá/Fico contente/E enquanto estou ausente/Guarda um cravo para mim/Eu queria estar na festa, pá/Com a tua gente/E colher pessoalmente/Uma flor no teu jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também que é preciso, pá/Navegar, navegar/Lá faz primavera, pá/Cá estou doente/Manda urgentemente/Algum cheirinho de alecrim”. Na segunda versão, mais trabalhada poeticamente, em obediência aos preceitos dos tratados de versificação, o poeta atinge uma dimensão artística de maior alcance e um andamento estilístico mais preciso, rítmico e melódico. Aqui está: “Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente/Ainda guardo renitente/Um velho cravo para mim/Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/N’algum canto de jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também como é preciso, pá/Navegar, navegar/Canta primavera, pá/Cá estou carente/Manda novamente/Algum cheirinho de alecrim”.
Nesta quinta-feira, 25 de abril de 2024, comemoram-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, cuja ocorrência, em abril de 1974, portanto, deu início a uma série de acontecimentos libertários dos países colonizados por Portugal, razão por que os festejos reunirão, nesta quinta-feira 25, diversos outros chefes de Estado, a exemplo de Angola e Moçambique.
Transitando entre a ficção e a realidade, como é próprio da Arte, em “Quase Romance” (Sarau das Letras, 2021), minha estreia na narrativa longa, prestei uma singela homenagem aos portugueses no capítulo do livro dedicado a esse memorável acontecimento histórico, momento em que, no plano do conteúdo, a personagem Ana já deixara o país para retornar ao Brasil:
“Ironicamente, Ana deixara Portugal às vésperas da derrubada do governo salazarista de Marcello Caetano, ocorrida em 25 de abril de 1974. Por curioso, mais que os revolucionários que punham por terra o regime de inspiração fascista conhecido como Estado Novo, vigente desde 1933, uma mulher simples, uma humilde empregada de um restaurante da rua Braacamp, que tantas vezes frequentara ao lado de Linda, entraria para a história: Celeste Martins Caeiro, era o seu nome. O bar chamava-se “Franjinha” e fora inaugurado havia exatos doze meses. Para comemorar a data, a gerência decidira comprar uma grande quantidade de cravos vermelhos e brancos para distribuir com as senhoras. Aos homens, de cortesia, seria servido um “Porto”.
Em face da grande mobilização popular que tomava conta das imediações do “Franjinha”, a gerência do restaurante resolvera manter suas portas fechadas. O que fazer, todavia, com tantos cravos? “Leve-os para suas casas”, disse, na véspera, Isabel Falcão, a gerente, dirigindo-se aos empregados do restaurante.
Abraçada a um molho de cravos vermelhos, Celeste tomou o metrô a caminho do Rossio, deparando, ao descer nas proximidades do cubículo em que morava com a mãe e uma filha, no Chiado, com os tanques revolucionários. Aproximando-se de um deles, pergunta a um soldado o que se passa ali, ao que ele responde: “Vamos para o Carmo derrubar Marcello Caetano. Isto é uma revolução!”
O soldado pede a Celeste um cigarro. Como não fumasse, ela oferece-lhe um cravo. Não tendo outra forma como reagir ao gesto da doce mulher, o soldado, displicentemente, coloca o cravo no cano do fuzil. Celeste os ofereceu, em seguida, a outros soldados, que também os colocaram na ponta de suas armas. Os outros empregados do “Franjinha”, que ali se encontravam, passaram a distribuir os seus cravos também. Em poucos minutos, eram centenas de fuzis ornamentados com as flores com que se pretendia comemorar o primeiro aniversário de um pequeno restaurante.
Era a Revolução dos Cravos.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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