Uma só vez, e nunca mais…

14/01/2023

Como de costume, nos reunimos em mais um sábado para pôr as conversas em dia e, entre um trago e outro, dissertarmos sobre política, religião, literatura e, claro, mulheres. Uma mesa de bar que se preze deve haver também, além dos inveterados alcoólatras, temas dessa natureza – sobretudo o último.

Invocamos a vida dionisíaca em copos sempre cheios e tragos intermináveis. O pecado seria falar de trabalho. Este, deixemos que a semana o leve e o traga na independência do nosso querer. Só os tolos falam sobre trabalho em horário de lazer.

Íamos para mais uma rodada quando ela chegou. Posso descrevê-la sem que a embriaguez daquele momento me permita mentir neste instante: sandália rasteira; saia vermelha (que mostrava pouca parte de suas bem servidas coxas); blusa estampada em detalhes em azul e branco, com um delicado decote, fazendo-nos imaginar como seria o restante da pele que a vestimenta fina ali cobria; cabelos negros até a cintura, e lisos; pele muito branca e um rosto de traços delicados, onde o rubor de suas bochechas realçavam ainda mais a sua beleza típica dos nórdicos.

Obviamente, qualquer assunto, que sequer me lembro qual era, fora posto de lado ante a visão celestial feita carne em nossa frente naquele mosqueiro que era a taberna dos degenerados. Tudo cessou: as conversas nas mesas, a música no velho rádio… até as velhas mal-amadas calaram suas vassouras para observar, com desdém e inveja, aquele ser destoante do nosso ambiente infecto, do nosso reduto, do nosso ”mito da caverna.”

”Por favor, uma carteira de cigarros”, disse a criatura bélica. Sim, bélica. Ou acaso duvidam que criaturas desta estirpe não destruam, tal qual uma ogiva nuclear, de uma só vez, dezenas de juras feitas diante do altar, diante padre e de Deus?!

Sua voz juvenil agradeceu pelos cigarros que comprara e acomodou-se em uma mesa situada na porta que dava para a saída. Parecia esperar alguém, pois, como não deixava de digitar no celular sem aparentemente obter resposta do seu receptor, sua impaciência tornava-se cada vez mais visível…

Percebi que a bela jovem não dispunha de isqueiro ou fósforo para acender o seu cigarro. Vislumbrando uma boa e oportuna abordagem, aproximei-me de sua mesa e ofereci o meu isqueiro. Foi quando percebi que ela sacou da bolsa um pequeno espelho. Símbolo da vaidade feminina, claro.

Ofereci uma bebida e, de pronto – para minha maior surpresa – ela aceitou sem titubear. Não hesitou também em convidar-me para fazer-me presente à mesa. Tão grande foi minha surpresa, que fiquei sem saber o que dizer ou fazer. Não imaginava que isso ocorreria de maneira tão abrupta e direta. Todavia, como não recuo ante tais privilégios desta magnitude, não me fiz de rogado; tão logo me despedi dos meus debochados amigos e sentei-me em uma das cadeiras da referida mesa da beldade.

Após o protocolo elementar de toda apresentação formal, a jovem começou um diálogo mediante a minha pergunta sobre o que fazia naquele ambiente soturno.  Confidenciou-me que viera de uma noitada regada à vodka vagabunda. Não parecia estar embriagada… mas não comentei sobre. Disse que não queria ir pra casa, e que gostaria de fugir da rotina. Assim, veio parar no lugar mais insólito que pôde encontrar: aquele bar (se é que assim podemos chamar este antro de perdição dos errantes que somos).

Como todo mundo, não demorou muito para que ela relatasse sobre um desconforto que a incomodava há pelo menos três meses. ‘‘Sinto que meu coração, despejado no outro, transbordou, e, com os orifícios do coração no qual o meu despejou-se, este, esvaiu-se completamente para o abissal dissabor da vida’’, filosofou a moça. Não perguntei se a frase era de sua autoria; mas que era de um lirismo profano, isso era. Gostei. Por um momento, esqueci-me da razão puramente carnal que tanto nos comanda instintivamente, a qual principiou estarmos ali naquela mesa de bar.

Conversamos por cerca de duas horas. Pensei que gente bonita não sofria como as feias! A jovem nórdica estava cansada da inibição dos homens ante sua beleza infinda. Também estava cansada da ausência de substância dos ‘‘putos das noites’’ (assim ela chamava aos babacas descerebrados). Não tinha mais saco para ‘‘conversas de madame’’, conversas das chatíssimas feministas, dos loquazes inexpressivos em essência, dos taciturnos irritantes pela inexistência de espírito irrequieto diante do mundo das palavras…

Enfim. Com certo coquetismo, naquele lugar lúgubre, pude perceber que estava dividindo a mesa com alguém que era mais do que uma encarnação da bela Afrodite. O estado de beatitude consumiu-me num torpor inebriante. A moça, um híbrido de depravação medieval e romantismo gótico, brindou comigo dizendo: ‘‘Quando eu retornar de ‘‘X’’, quero ver-te. Precisamos beber em outro lugar que não este!’’ O tempo passou. Trocamos telefone, trocamos livros e fluidos… uma só vez, e nunca mais…

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

 

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