O rádio ligado anunciava as últimas do mundo policial: dois mortos e um ferido em uma troca de tiro entre vizinhos naquela noite. ”Valei-me, meu São Jorge”, dizia um velhinho quase caquético ao outro. Daí em diante, começaram uma conversa sobre a proximidade do fim do mundo. Que tais acontecimentos sangrentos prenunciavam a vinda do Salvador… Essas coisas.
Sei bem o valor e a razão de ser de uma religião; minha descrença não me deixou cego de um todo, mas há muito me esquivo de assuntos metafísicos, teológicos, espiritualistas ou qualquer coisa que se assemelhe. Dentro de mim, todo um hades e paraíso jazem na mesma tímida chama que um dia fora fogaréu. A vida futura, se virá, não me interessa. ”Tenho pressa de viver”, como dizia o sobralense Belchior. Anseio pelo imediatismo, não conjecturas das quais sempre, pela minha natureza, desconfio.
Entro no meu quarto, pego um cigarro, acendo e, olhando para a fumaça, penso sobre as desgraças que cada um carrega dentro de si. Dos segredos inconfessáveis, das alegrias poucas vezes revividas, dos outros que não veem o mundo como eu, e que por isso são mais felizes, e outros mais infelizes ainda… Pareidolia! A fumaça do fumo toma uma forma mal desenhada de um rosto feminino… ou de um demônio… Nunca sei a diferença. Talvez o meu subconsciente quisesse, sempre impertinente, vê-la nos lugares mais insólitos.
Volto à sala e os velhos continuam com seus assuntos sobre desgraça, doença e miséria. Parecem alimentar com gozo o monotemático teor: a calamidade. Como se já não bastasse o inferno em que todos, enquanto almas sofríveis, já carregamos introspectivamente. Tudo o que não é externo, lhes é estranho e alheio. Incautos desavisados. Sexagenários desperdiçando os últimos segundos em, tão somente, agourar as parcas vidas que lhes restam.
Retorno ao quarto, acendo mais um cigarro, que me levará para a escuridão eterna, quem sabe, mais cedo do que os agourentos velhinhos, e leio Allan Poe. Se for pra ”falar” de morte, que seja com classe e com um mestre. Aliás, são dele duas frases das quais aprecio. São elas: ‘‘As fronteiras que dividem a vida da morte são, na melhor das hipóteses, sombrias e vagas. Quem dirá onde termina um, e começa o outro?’’ e ‘‘A morte deve ser encarada de frente, com louvor, para depois ser convidada para uma bebida’’.
O velho Poe sabia bem escolher as palavras, não é mesmo, preclaro leitor? Com tais aforismo, o coração – ao menos o meu – se apraz, e a fumaça volta a parecer o que é, e a paz reina, ainda que paliativamente. Nesse mundo, não há mais tempo para procrastinar quando se trata dos verdadeiros valores que cada um dá aos seus objetivos. Muito se perde por não promover o tempo necessário a todo e qualquer vivente. Todavia, é inútil qualquer tentativa: o fracasso parece inevitável, inexorável. Fim de vida enuncia a do porvir, que, ante a predecessora, retrocederá igualmente errante.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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