Por Pablo Bandeira (Economista)
Eu existo através de vinhetas. A vista da janela dos meus amantes é tão Pablo quanto a visão entrecortada entre uma ilha e a outra do escritório onde eu trabalho, quase tão distorcida com a visão das topiques entre os terrenos das Barreiras e as ilhas da Trussu. E, mesmo assim, tão parecido com o Pablo da minha vizinha de prédio. Quando estamos falando de situação social e, portanto, de privilégios, me sinto uma cidade muito parecida, mas apenas isso, com as cidades que são cada uma das pessoas das minhas diversas famílias. Quando estamos falando de afinidades, o meu eu cidade tem muito em comum com a cidade dos meus amigos mais próximos.
Quando estamos falando de rotina, o meu eu cidade não é nada parecido com a cidade dos meus alunos, ainda que eles construam as mesmas ruas que eu construo todos os dias. Mas por mais que cruzem endereços e experiências, os eu-cidades de duas pessoas nunca é idêntica, em especial agora, quando parte de nós segue vendo a cidade pelas janelas dos carros e outra pelo chão das calçadas. Eu, que não tenho vista da janela, só vejo o sol ou a chuva chegando pelas frestas entre os prédios que habitam em mim. Agora, quase sempre escuro, nunca mais vi o sol.
Sinto que o meu eu-cidade está quase toda muito feia. O feio que cabe os fios de energia elétrica amarrados em postes que acabam tortos pelo peso. No barulho da britadeira entrando através das paredes antes das oito da manhã de um sábado e que acordam meus habitantes. Nas empenas pintadas de bege. Nas janelas cobertas por toalhas servindo de cortinas. Na grade de ferro solta na frente do ponto de ônibus. Nos meus Nove de Julhos. No lixo molhado acumulado depois das tempestades de verão.
Nas manchas de fuligem acumuladas em mobílias no inverno. Na história do café que se disfarça de orgulho para tentar esquecer do passado. Na erva daninha que cresce sem controle, alimentada pela chuva em qualquer pedacinho de calçada. Essa da qual você não pode se esconder toda vez que coloca o pé fora de casa é o mais perto que existe de um eu-cidade de verdade. Pablo que afunda em dias normais, Pablo explodindo de calor, Pablo choques elétricos.
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