WHISKY, SÓ AQUI!

14/02/2020

“Tristes vozes da lembrança…”

Mihail Eminescu

Ao Airton

Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.), o maior poeta latino, fala sobre os sonhos no final do liber VI de sua Aeneis (Eneida).Diz-nos que eles vêm até nós através de duas portas. Uma, de ouro, por onde passam os sonhos falsos. A outra, de marfim, por onde passam os verdadeiros. Penso que os falsos não nos causam nenhuma impressão ao acordarmos. Ou outros, porém, deixam-nos a pensar. Angustiamo-nos, temos medo ou ficamos com a alma em estado de paz ao recebermos os sonhos pela eburneae janua (porta de marfim).

Eu sonho com o meu velho amigo Airton, o que a morte levou, pelo menos uma vez por semana. Sonhos ebúrneos, por certo. Sonhos quase reais. Acordo com uma imensa sensação de paz, com uma doce certeza de que ele ainda vive, de alguma forma que não consigo explicar.

Em todos os sonhos com ele repetem-se alguns pontos. Ele tem sempre uma fisionomia serena, transmite confiança, parece querer dizer-me algo, ensinar-me alguma coisa. Estamos sempre em longas pescarias – foi o que sempre fizemos juntos – em belos lugares, paisagens com muitos rios e pedras. Ele quase não fala e, finalmente, estamos, ou melhor, eu estou sempre a beber. Whisky. Este último ponto é extremamente curioso. Nós sempre bebemos muito. Ele, rum. Eu, o velho malte. Eu ainda bebo muito e beberei até a morte. Por que a morte tirou-lhe o álcool consolador? Por que nos sonhos só eu estou a beber e ele não?

Talvez a velha raposa morte tenha para nós algo melhor do que um bom whisky. Eu duvido. Talvez a morte – infelizmente é preciso considerar tal hipótese – seja a anulação de tudo. Por isso o velho Airton está sem o seu copo de rum quando aparece nos meus sonhos. Onde ele estiver deve sentir falta. Ele gostava muito; tomava com refrigerante, a conversar, a rir, por longas horas a fio.

Por toda a minha vida, fico a pensar, o whisky sempre acompanhou-me. A bebida e o velho Airton (éramos amigos desde a infância). Momentos tristes, alegres, mulheres, pescarias, tudo. O álcool e o Airton sempre ao meu lado. Dois grandes amigos, os melhores. Um, a morte me roubou. Fiquei com o outro, o whisky. Tento consolar-me e ainda choro, muito. Homem chora; homem também ama um grande amigo.

Talvez – acalma-me pensar assim – no continuar da vida após a morte haja algo além e melhor do que o álcool. Por isso o velho Airton tem aquela face tão serena nos sonhos. Como se não precisasse mais das boas doses de rum. Talvez…

Então o whisky é só aqui! Juntamente com toda incompletude, toda ausência e toda perda. E a pesada saudade do melhor dos amigos. Por enquanto, enquanto há vida, bebamos whisky. Ao Airton!

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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